terça-feira, 19 de julho de 2011

Clarice Lispector


Lição de Filho, Clarice Lispector. Jornal do Brasil, 1968.

Recebi uma lição de um de meus filhos, antes dele fazer 14 anos. Haviam me telefonado avisando que uma moça que eu conheci ia tocar na televisão, transmitido pelo Ministério da Educação.Liguei a televisão mas em grande dúvida. Eu conhecera essa moça pessoalmente e ela era excessivamente suave, com voz de criança, e de um feminino-infantil. E eu me perguntava: terá ela força no piano? Eu a conhecera num momento muito importante: quando ela ia escolher a "camisola do dia" para o casamento. As perguntas que me fazia eram de uma franqueza ingênua que me surpreendia. Tocaria ela piano? Começou. E, Deus, ela possuía a força. Seu rosto era um outro, irreconhecível. Nos momentos de violência apertava violentamente os lábios. Nos instantes de doçura entreabria a boca, dando-se inteira. E suava, da testa escorria para o rosto o suor. De surpresa de descobrir uma alma insuspeita, fiquei com os olhos cheios de água, na verdade eu chorava. Percebi que meu filho, quase uma criança, notara, expliquei: estou emocionada, vou tomar um calmante.
E ele: -Você não sabe diferenciar emoção de nervosismo? Você está tendo uma emoção. Entendi, aceitei, e disse-lhe: -Não vou tomar nenhum calmante.
E vivi o que era para ser servivido.

Seria o blog ilusão?


Conheci poeta e professor Ítalo Moriconi pessoalmente quando fiz um curso sobre a poeta Ana Cristina César no Instituto Moreira Salles, RJ.
Ítalo dava uma parte do curso.

Eis que achei um blog assinado por ele disponível em:

http://www.cronopios.com.br/site/colunistas.asp?id_usuario=50#texto

Segue um trecho do texto que retirei de lá, do blog da procrastinação.

Meu blog é meu diário, meu blog é minha carta. Não sei se no meu blog devo usar meu nome autoral ou meu nick especial. Meu, meu, meu... O que ficou pra mim na partilha dos espaços? Tenho inveja do Sérgio Sant’Anna, que senta na cadeira, em frente ao computador, e digita contos, digita obras primas. A fonte do Sérgio jorra permanente. Todos à minha volta estão sentados, estão produzindo, e eu aqui. Caminho pelo apartamento, com passadas vigorosas. Quero malhar, mas chove lá fora. O Silviano Santiago está fazendo a revisão final de seu novo e - creio - importante livro, que ele vem escrevendo há meses e meses, estudo comparativo entre as obras fundadoras de Octavio Paz e de outro Sérgio, o Buarque de Hollanda. Meu blog é confidência. Confidência, inconfidência. Minha doce amiga, obstinada das letras, Márcia Denser, está para lançar Caim, uma novela ou, pelas dimensões, noveleta de primeira linha, texto intenso. Lançando mão de uma estrutura dramática (dialógica), La Denser faz a escavação fria de uma saga familiar e seus demônios, surfando entre ego e alter ego, entre nome e nick. Ela já descobriu esse jogo faz tempo, desde Diana Marini. E agora encontra o encanto do enigma, da cifra como motor do poético.

Meu blog é quero-quero. Quero malhar, quero nadar, puxar ferro. Mas chove lá fora. Quero surfar. Pela linguagem, pelo mar. Sou Caeiro tropical, pelas veredas do corpo-sertão, nem sempre tolero ler, jogo livros ao mar. Não tolero ler, foi o que me disse outra amiga, pedindo-me anonimato, pois é professora de letras e mãe de crianças tidas como neuróticas, pois se divertem lendo – gostam mais de livros que de games. Dizia-me ela, sem nome porque sem nick: só tolero o tempo-espaço do jornal, dos sites, da poesia moderna, tudo assim, picadinho. Nietzsche já tinha observado: o leitor moderno é desse jeito, dispersivo, vai de déu em déu, pica-flor, de trecho em trecho, de frase em frase. (Poetar, frasear.)

Ler também pode ser um recurso de procrastinação. O melhor do escrever é procrastinar? O melhor do sexo é a preliminar? Furor do amor, furor de ler [...]. Será o prazer de procrastinar karma inerente ao professor-escritor?

Escrever é tecer? Derridá? Para mim, lápis é agulha, frase é linha, a tela é o prêt-à-porter, a pronta entrega, delivery, délivrance, escrever é parir? Ato doloroso. A procrastinação é a dor do parto, é curtir dentro da dor. Mais penoso que escrever um livro aos 50, sofrer nesse paraíso, é escrever uma tese de doutorado aos 35. Foi quando descobri o ato de ler como recurso de procrastinação, forma de adiar pela simulação a intensidade exigente do ato de escrever. Tempo de máxima concentração, furor solitário, briga titânica com a dispersão. Torre de marfim, bunker defeso, underdog. O importante é começar. A partir daí, jorra permanente. Escrever suga o tempo. O jorro é começo e fim do trabalho no tempo, da negociação com o tempo.

Meu blog é minha cabeça fragmentada, é meu jornal. Meu blog não é meu orkut, que carrega meu nome, criado por terceiros. No blog tenho nick, sussurro segredo no teu ouvido, alto e bom som. Megafone do mais íntimo ser, super-exposição. O eu também é recurso de cultura. Vaidade é capital. Vc tem todo o direito de ser vaidos@. Vaidade, orgulho, auto-estima. Pode? Quem pode? Auto-estima, auto-depreciação. No blog, sou inconfidente, tento a poesia, a poesia dói tanto da verdade que se traveste toda de mentira, ela toda estilização, toda fashion-máscara, nick-e-l’odeon, neon, puro brilho. Não sou do brilho, sou da paz e da inspiração. A paz do deserto. A inspiração perdida no deserto infinito. Areia e erosão. Procrastinação, travessia de um deserto, meu deserto sem flauta de Anfion, sem mais nada, mar de ensimesmar, musical e televisual, fantasmal. Passeio em arquivos, procuro inspirar-me em jornais antigos para começar meu novo livro. Cara, não inventa, procrastinação é preguiça, e a melhor palavra para designá-la é enrolação. Então você vai querer me convencer que enrolação é preguiça? Enrolação é negociação entre o nome e o nick, é a demora na produção da máscara adequada, do tom adequado. 

Assumir a preguiça. A vagabundagem tensa do escrever poético. Enlangueço sobre o divã, ao som de Mahler. Dei de presente uns lieder de Mahler para a poeta Lu Menezes pelo aniversário dela. Eu quis muito dar um presente assim para a Lu, porque ela é dessas pessoas que chega até a ponta de lâmina de uma estesia meticulosa, ela sabe. O lied alemão pra mim é o máximo que se pode querer em matéria de lírica (poesia+música). Pena que não sei fazer uma análise técnica musical de cada lied, como faria facilmente o nosso (meu e de Lu) velho amigo, parceiro, mano, Paulo Henriques Britto, que sabe ler pauta e sabe tudo de música, do puro ritmo do rock à música-divina-música do clássico. Eles vão e eles vêm. E de novo. Repetição que nunca se repete igual, até chegar ao estupor do irrepetível – aquilo que permanece constante, evocando o rumor rancoroso do sono mineral. Areia, erodir. Os deuses da concentração me abandonaram neste deserto sem formas, com seus fantasmas cambaios, mutilados. Intuitivamente pressinto que no lied cada sílaba poética corresponde a uma nota ou tom musical e posso dizer também que a lei da concisão chega no lied a seu máximo de perfeição. Perfeição, teu nome é lied. Teu nome é Mahler. Teu nome é Schubert. Teu nome é Titãs.

Meu blog é meu rap, é meu verso, meu versar. Meu cronicar, meu mal crônico. Falar a esmo, escrever por espasmos, derivar, derivar – a lei do léu, a lei do ler por prazer, o ler como ato gratuito. O procrastinar como fundamento do escrever, fundamento do ser. Sou beija-flor pica-flor de cazuza boneco, à procura de açúcar, quero-quero açúcar, mais um café. Mais um café, mais um back, mais um black – hole: explodiu de luz. A chuva parou. O sol esquentou. Passa de meio-dia. Ainda não escrevi uma linha, me liga mais tarde. Meu blog é o arquivo enlouquecido, é o livro que não nasceu, é o brincar a sério como preparação para o ato. Vamos cometer o ato da escrita, juntos, brincando com nome, com nick, com autoria, com anonimato. Como no novo tipo de discurso interativo que nasce na fronteira entre a literatura e a comunicação. Quem tem nome tem poder. Quem tem nick tem poder. Mas o anonimato também é uma força de escrita. As cartas para ninguém. O diário de mim para comigo. Os contos que enviam para o Paulo Coelho. O anonimato também é força movendo o texto, que navega, solto, à espera de engates, pelo multi-espaço simultâneo das estradas virtuais. Meu corpo com nome e nick é tocável e intocável, oferenda inatingível, é mascarado, sertão palmilhado. Sou traça e traço, rastro de Caeiro, me reacende o toque do dedo alheio, e assim me alheio. Alheias areias da luz que se faz. Movimento digital da criação. Um último café. Largar a enrolação. Fechar o livro. Deixar descansar o lápis. Ativar o on que é off. A tela ilumina o fim de tarde contra a parede. Você escreve, eu te leio, eu escrevo, nós.

Italo Moriconi – escritor e professor. Autor de A Provocação Pós-Moderna (ensaio acadêmico, 1994), Ana Cristina César – O Sangue de uma Poeta (perfil biográfico, 1996) e Como e Por Que Ler A Poesia Brasileira do Século XX (ed. Objetiva, 2002). Organizou as antologias Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século (ed. Objetiva, 2000) e Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século (ed. Objetiva, 2001). Editou Cartas de Caio Fernando Abreu (ed. Aeroplano, 2002). Publicou 3 plaquetes de poesia: Léu (1988), Quase Sertão (1996) e História do Peixe (2001). Recentemente teve trabalhos publicados nas revistas Grumo